quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

Alma itinerante

A cada dia que passa
Vou descascando um pedaço
Da minha alma escancarada
Envergonhada de se ver
E ao mesmo tempo curiosa
Por descobrir o que tem
Atrás dos portais brilhantes
Que tentavam escondê-la.
Cores irreconciliáveis
Paisagens do mundo dos sonhos
Passagens secretas para sabe–se lá onde.
Dores secretas explodindo
Rompendo com a ordem conhecida.
O que fazer com o limbo
Com a memória e os fiapos
De um mudo que não existe mais?

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012


O menino despenteado
 
Ela havia aprendido, não sei onde nem como, que se fosse perfeita poderia, talvez, ser amada. E por isso, em busca de afeto, foi se lapidando esperando encontrar o tão esperado reconhecimento. Foi também, ao longo do caminho, aprendendo a desprezar aqueles que não se dedicavam à tarefa de corresponder aos padrões ideais de conteúdo e forma. Padrões olímpicos. Recompensas, nem tanto.

Quando estava no 3º ano primário ouviu a professora dizer:

_Vocês farão duplas fixas durante todo este ano. Essas duplas farão os trabalhos juntas, se auxiliarão e trocarão experiências. Serão selecionadas por sorteio.

Então, a surpresa. Seu parceiro era o menino mais despenteado da classe. Ele dormia na aula, não se interessava por anda, não estudava nem fazia as lições. Gostava de brincar, jogar, assistir televisão. Ler? Nem pensar! Fazer trabalhos em grupo? Sem comentários. Além disso, não sabia jogar bola, nem pingue-pongue, não entendia de música, não conseguia nem mesmo fazer um desenho decente... Meu Deus, será que ele tinha alguma remota qualidade????? Ela que havia tentado criar a personalidade agradável, ser a primeira aluna, comportar-se “como uma mocinha” e que se exibia como se fosse um ser superior era obrigada a transitar, a explicar, a conviver com o pior dos meninos! Não era justo! Na verdade, ela sentia vergonha.

No início, espalhou para todos que não tinha nada a ver com aquilo, com aquele sorteio, com aquele menino, com a raiva que ele lhe provocava, com a vergonha que ele lhe causava, com os problemas escolares, com as humilhações que ele sofria, com o isolamento no qual se encontrava nas ocasiões em que ninguém sua companhia. Não. Aquele ser, evidentemente, visivelmente inferior não combinava com seu estilo, com seu vestuário, com seu piano e com suas mãos delicadas... Era algo que destruía qualquer tentativa de parecer perfeita. A ruína de um projeto de vida. Se ela tivesse tido opção, teria mudado de ano, de classe, de escola, teria fugido, fingido não conhecer...




Mas quis o destino que ela não tivesse escolha. Era ele e pronto.

Um dia passou e depois outro. E ela descobriu que o garoto despenteado ria muito mais do que ela. Ele se sentia imensamente feliz cada vez que alguém vinha em sua casa brincar. E embora precisasse também de afeto não estava pronto a negociar sua forma de ser e seus desejos para obtê-lo. Ele sabia que não era perfeito e que jamais o seria, mas esperava ser amado assim mesmo. Ela enfim percebeu que por trás daquele “desastre ambulante” havia um ser amoroso, inocente, de luz. Pela primeira vez, deixou de lado os pensamentos emprestados que mediam o mundo com a régua da crítica, abandonou sua alma de pedinte e enxergou com seus próprios olhos. E esses olhos podiam amar um "ser imperfeito".

E embora ela tivesse passado todo um ano tentando ensinar-lhe matemática, história, português era ele o verdadeiro mestre, pois demonstrou, sem nada dizer, que o amor não é uma moeda de troca, não pode ser negociável, não é conquistado como um prêmio em uma prova de resistência. O verdadeiro amor é dado, sem condições. E é esse amor que o menino despenteado veio ensinar ao mundo.
Enquanto você olhar o mundo medindo o valor de tudo, você verá o menino despenteado, desajeitado. Quando enxergar a realidade através do seu ser mais puro verá um menino de luz. Mas isso é segredo.

No ano seguinte, no momento do sorteio, a menina que se queria ser perfeita e que tinha certeza de que não era não esperou a professora perguntar. Segurou na mão desajeitada do seu amigo despenteado e declarou que gostaria de continuar a fazer dupla com ele. Afinal, seu aprendizado estava apenas começando.


sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

Desembrulhando-se

Quem não gosta de ganhar presente? Quem não gosta de descobrir, embaixo de tudo o que o cobre, o conteúdo inesperado ( ou aguardado!) de um pacote especial? As vezes, passamos a vida nos dando presentes materiais e isso nos alegra, por algum tempo. Mas, entretidos com o brilho do que existe fora, esquecemos de  desembrulhar o nosso maior presente: a nossa alma. Não existe maior aventura, ou maior alegria do que ir retirando as camadas e camadas que a escondem.
Aos pouco vou descobrindo que aquela pessoa que tinha receio de abordar os outros não era eu, era um outro, uma noção importada que havia colado em mim como um durex. Hoje, minha alma tem outros planos.
Aos poucos, vou entrevendo os sonhos que haviam sido meio soterrados pelas convenções e aprisionados em nome das obrigações socias. Retiro essas fitas que prendiam minha alma e ela começa a respirar um pouco mais.
Contendo a furiosa vontade de viver e de experimentar tudo, havia um papel muito resistente chamado "você deve" e uma grande caixa opaca ocultava o brilho de um Ser ávido de felicidade.
Assim, ao avançar me "desembrulhando", vou encontrando tesouros inimagináveis. Ideias, antes tidas como inconcebíveis, passam a habitar o mundo dos vivos, do possível, do provável.
Haverá caminho mais inesperado do que trilhar o território interior, esquadrinhá-lo e discernir aquilo que nos pertence daquilo que acreditávamos ser nosso? Jornada longa, mas fascinante, cujo prêmio é encontrar-Se.