O menino despenteado
Ela havia aprendido, não sei onde nem como, que se fosse
perfeita poderia, talvez, ser amada. E por isso, em busca de afeto, foi se
lapidando esperando encontrar o tão esperado reconhecimento. Foi também, ao
longo do caminho, aprendendo a desprezar aqueles que não se dedicavam à tarefa
de corresponder aos padrões ideais de conteúdo e forma. Padrões olímpicos.
Recompensas, nem tanto.
Quando estava no 3º ano primário ouviu a professora dizer:
_Vocês farão duplas fixas durante todo este ano. Essas
duplas farão os trabalhos juntas, se auxiliarão e trocarão experiências. Serão
selecionadas por sorteio.
Então, a surpresa. Seu parceiro era o menino mais
despenteado da classe. Ele dormia na aula, não se interessava por anda, não
estudava nem fazia as lições. Gostava de brincar, jogar, assistir televisão.
Ler? Nem pensar! Fazer trabalhos em grupo? Sem comentários. Além disso, não
sabia jogar bola, nem pingue-pongue, não entendia de música, não conseguia nem
mesmo fazer um desenho decente... Meu Deus, será que ele tinha alguma remota
qualidade????? Ela que havia tentado criar a personalidade agradável, ser a
primeira aluna, comportar-se “como uma mocinha” e que se exibia como se fosse
um ser superior era obrigada a transitar, a explicar, a conviver com o pior dos
meninos! Não era justo! Na verdade, ela sentia vergonha.
No início, espalhou para todos que não tinha nada a ver com
aquilo, com aquele sorteio, com aquele menino, com a raiva que ele lhe
provocava, com a vergonha que ele lhe causava, com os problemas escolares, com
as humilhações que ele sofria, com o isolamento no qual se encontrava nas
ocasiões em que ninguém sua companhia. Não. Aquele ser, evidentemente,
visivelmente inferior não combinava com seu estilo, com seu vestuário, com seu
piano e com suas mãos delicadas... Era algo que destruía qualquer tentativa de parecer
perfeita. A ruína de um projeto de vida. Se ela tivesse tido opção, teria
mudado de ano, de classe, de escola, teria fugido, fingido não conhecer...
Mas quis o destino que ela não tivesse escolha. Era ele e pronto.
Um dia passou e depois outro. E ela descobriu que o garoto
despenteado ria muito mais do que ela. Ele se sentia imensamente feliz cada vez
que alguém vinha em sua casa brincar. E embora precisasse também de afeto não
estava pronto a negociar sua forma de ser e seus desejos para obtê-lo. Ele
sabia que não era perfeito e que jamais o seria, mas esperava ser amado assim
mesmo. Ela enfim percebeu que por trás daquele “desastre ambulante” havia um
ser amoroso, inocente, de luz. Pela primeira vez, deixou de lado os pensamentos
emprestados que mediam o mundo com a régua da crítica, abandonou sua alma de
pedinte e enxergou com seus próprios olhos. E esses olhos podiam amar um "ser
imperfeito".
E embora ela tivesse passado todo um ano tentando
ensinar-lhe matemática, história, português era ele o verdadeiro mestre, pois
demonstrou, sem nada dizer, que o amor não é uma moeda de troca, não pode ser
negociável, não é conquistado como um prêmio em uma prova de resistência. O
verdadeiro amor é dado, sem condições. E é esse amor que o menino despenteado
veio ensinar ao mundo.
Enquanto você olhar o mundo medindo o valor de tudo, você
verá o menino despenteado, desajeitado. Quando enxergar a realidade através do
seu ser mais puro verá um menino de luz. Mas isso é segredo.
No ano seguinte, no momento do sorteio, a menina que se
queria ser perfeita e que tinha certeza de que não era não esperou a professora
perguntar. Segurou na mão desajeitada do seu amigo despenteado e declarou que
gostaria de continuar a fazer dupla com ele. Afinal, seu aprendizado estava
apenas começando.